terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O mendigo e uma tal felicidade.

Da casa para o ponto de ônibus não era tão longe, o sol tinha lhe queimado as faces de um vermelho que ela não gostava, era quase meio dia e ele o sol ainda estava calmo. Tinha dado só um trago para relaxar, mas esse trago tinha lhe feito pensar que da casa ao ponto de ônibus o tempo de percurso era o bastante para lhe fazer pensar demais. Tinha se pego parada olhando para um mendigo que pedia esmola sem muita vontade, estava apenas olhando para ele fixa sem pensar em nada, não havia o que pensar, mas a imagem feia e relaxada do mendigo lhe chamou atenção. Percebeu que as pessoas andavam apressadas não porque estavam ansiosas para um longo dia de trabalho, mas porque era a rotina e se atrasar seria um crédito a menos com o chefe, e um motivo a mais para a perca do emprego. Estava tudo correndo normalmente, era comum a pressa, mas o mendigo não tinha pressa, nem coragem para se levantar e correr como os outros e dormia de lado do chapéu surrado que já continha algumas moedas. De repente um pensamento desses sem importância lhe tomou, quem era mais feliz, o mendigo ou as pessoas que correm apressadas em busca de sustento? Qualquer um diria que as pessoas que mesmo apressadas ainda vivem melhor que o mendigo, com casa e comida. O mendigo não tinha nada, vivia na rua, não votava, não tinha família, dormia com qualquer uma que podia estar ou não na mesma situação, não trabalhava, e o dinheiro que ganhava por dia servia para comer, salvo as roupas que lhe davam e o cobertor que ganhara na campanha do natal passado, a noite iria dormir debaixo do viaduto com os outros miseráveis e se tivesse sorte em um abrigo às vezes lhe aceitavam e lhe davam banho. Mas naquele ponto de ônibus ela pensou que não, o mendigo era mais feliz, talvez ele já tenha tido família, pensou, casa, roupas limpas e até um carro, talvez o cachorro que lhe lambia de vez em quando fosse o mesmo de antes, da sua família. Pensou que poderia perguntar isso a ele, e se ele era feliz. E porque não seria? E porque achou que ele era mais feliz do que as outras pessoas que entravam nos ônibus apressadas para o emprego que nunca sonharam? Pensou que ele seria mais feliz, por não ter que sair de casa cedo para ir pro trabalho, que não era o de astronauta que sonhara quando criança, mas o de motorista cansado das outras pessoas também cansadas, porque não dormia com um homem ou com uma mulher que tinha se casado por pura convenção de uma sociedade que exige um casamento, porque não tinha filhos e porque não tinha que jogar na cara deles que os tinha e agora tinha que os sustentar, jogando neles todas as suas frustrações. Talvez o mendigo não fosse mais feliz por isso, talvez a dona de casa atrasada levando as crianças para o colégio gostasse da sua vida, mas era uma coisa tão automática, percebeu que nem o mendigo era livre, que mesmo que não tivesse responsabilidades, a não ser a de conseguir comida, sua vida tinha tanta rotina quantas as outras, e tão sem por que. Que qualidade de vida é essa que inventa controles remotos e comidas enlatadas, tudo para ser rápido e prático, qualquer dia o pôr-do-sol vai vim numa dessas latinhas, é só abrir e colorir a casa com vermelho e laranja. Para quê tanta pressa a caminho do mesmo fim, a morte. O mendigo não seria mais feliz por não ter que pagar IPTU, talvez ser mendigo fosse sua opção, teria desistido de vencer na vida. Teria desistido de andar apressado em busca do mesmo tédio de sempre, e em troca escolheu um tédio que não lhe causava esforço, mas que lhe custava caro, muito caro. Se ele preferia uma casa e um trabalho? Talvez não. Muitos preferem a “vida fácil” de pedir esmolas na rua. Vai trabalhar vagabundo dizia alguns que passavam, e o mendigo lhes sorria, tão vagabundo seria qualquer um que desistisse de trabalhar, talvez algumas pessoas tenham até inveja dele, sem patrão para reclamar, sempre uma nova aventura todo dia, e uma cachaça no final da noite para dormir tranqüilo no banco da praça, não era mesmo uma vida de se invejar, mas também não era de se invejar a vida automática das pessoas que passavam apressadas, tão decididas a marchar para o mesmo nada, nem sequer reparam no mendigo na rua, é um vagabundo qualquer pedindo esmolas, um nada, um Zé ninguém, um lixo, um pedaço de carne no chão que muitos esbarravam. Nem mesmo o mendigo, nem mesmo as pessoas apressadas com suas vidas enlatadas, nem mesmo o cara do carrão que jogara uma moeda para o mendigo, eram felizes, todos caminhavam para o mesmo nada. Mas o mendigo era a escória, o avesso, era o que ninguém queria ser e ao mesmo tempo o que teve coragem ou não para estar onde estar, e era ele que continuava nas esquinas importunando as outras pessoas com um chapéu a pedir esmolas, querendo que lhe banquem, o resto da sociedade que ninguém tomou conta, o peso nas costas das outras pessoas que lhe viam e que não sabiam se devia dar ou não esmolas, o peso na consciência dessas pessoas, o medo de serem como ele, ou melhor, de terminarem como ele, o mendigo não tinha vergonha, era falso, livre, era a vida que lhe ensinou que as pessoas lhe ajudavam por obrigação sob a luz de uma lei divina qualquer, e que lhe odiavam, lhe repugnavam. O mendigo não era nada e sua vida era tão sem sentido como as outras, mas ele vivia como um animal, comendo e dormindo, fazendo o que o instinto lhe pedia, e os outros viviam como “pessoas”, “gente”, indo pro trabalho e dormindo sempre na mesma hora, ambas as vidas sem grandes felicidades, talvez as “pessoas” se sentiam mais felizes por comerem aquela comida deliciosa desejada, coisa que o mendigo invejava, pois só comia o que lhe davam.
Era um dia qualquer e o ônibus tinha chegado dessa vez mais cedo, ela entrou no ônibus e se esqueceu rapidamente do mendigo, das pessoas, e da felicidade. Na rua o mendigo voltava a dormir, o mesmo sono vagabundo.