domingo, 23 de setembro de 2007

Antes de chegar a idade...

Eu era feliz quando ouvia músicas a tarde encostada na mesma parede da sala bem perto da caixa de som da direita, sonhando em um dia ser como as vozes das músicas, em ter as mesmas histórias, os mesmos amores, vários amores, velhos amores, nenhum amor. Eu, triste chegando em casa, pegando o velho disco da Janis, mas feliz por escutar aquela voz rasgada e única, e feliz em saber que de todos os meus colegas de escola eu era a única que a conhecia, o velho disco da Janis de capa rosa, disco duplo, mas onde um disco não era par do outro, ouvia o lado mais agitado, depois me encostava perto da caixa e escutava baixinho A woman left lonely, e depois mais alto Maybe, e até chorava e entendia tudo que o inglês de Litle girl blue queria dizer.
Eu era feliz quando você dizia que me amava naquele parque e tudo passava rápido e devagar pela minha cabeça quando você pronunciava, aquele parque que já foi bonito e que nele antes só a gente existia. As cervejas, o bar, os bancos, as nossas conversas sobre cinema, amores, brigas, amigos, sinuca, poesia, e formas de dizer eu te amo, o café junto com teu cigarro, os olhares, as músicas que você compunha para mim, as poesias que eu escrevia pra você com vergonha de mostrar, nós, e o resto do mundo. Aquelas tardes em que eu tinha que voltar antes do pôr do sol, chegar em casa deitar na cama e sorrir de alegria no puro êxtase de se estar apaixonado, na pura contemplação dos teus olhos escuros, brilhando na luz do refletor, as árvores verdes que se agitavam com o vento, os carros passando velozes, só havia nós dois ali, e eu me sentia feliz, eu escutava as melodias no meu quarto sozinha a noite e me lembrava do dia, eu fazia das canções da Joni as minhas composições, até as letras tristes e as dramáticas eram sobre mim, e com a primeira canção do disco eu me lembrava de você.
Eu era feliz junto dela, minha amiga, minha melhor amiga, nossas conversas durante a aula, nossas conversas sobre a aula, nossas conversas no dia anterior, nossos segredos revelados uma para outra, o desenho que roubei dela e que tenho até hoje, nossas quase brigas. Os filmes que assistíamos junto com meu irmão, das noites que saiamos, das tardes bebendo vinho no meu quarto, dos livros que líamos, dos shows com nossos amigos, me lembro que ela me fez gostar de Tom Zé, e nós descobrimos juntas Belchior. Lembro-me também como nos conhecemos na faculdade e como parecia que nos conhecíamos há muito tempo, e se eu acreditasse em vidas passadas, diríamos que éramos irmãs, minha amiga de juventude, me lembro de que como tinha medo que ela fosse embora.
Eu, eu era feliz, e hoje lembrando de tudo isso, não me sinto triste, nem nostálgica. O meu olhar hoje não é o mesmo olhar juvenil de antes, existem rugas ao seu redor, rugas do tempo, hoje não sei mais por onde anda minha velha amiga, nem sei se ainda vive, o meu amor, meu primeiro, só me restou as cartas e a foto, além das melodias que ainda trago comigo, minhas canções ainda existem, ainda são as mesmas, ainda escuto, ainda canto, mas minha voz não tem mais força, minhas mãos só escrevem agora memórias, meus cabelos não têm mais o mesmo brilho de antes nem a mesma cor, ficou sem cor, não uso mais jeans nem tênis, meus netos riem quando falo com as velhas gírias que usava no meu tempo, tempo em que eu lutava por amor e liberdade no meio do trânsito, parando os carros com as minhas bandeiras e meus amigos. Tempo em que pensava no futuro, mas não vivia o presente para ele, tinha medo do futuro porque não cuidava em me preparar para ele, apenas vivia como todos os jovens, minha mãe falava para nós: estudem, se formem e façam o que quiserem, mas nós queríamos apenas viver o que tinha de bom naquele momento, ler os livros que queríamos, falar o que quiséssemos, amar os amores mal resolvidos, nos divertir e chegar na hora errada. Era feliz aquele tempo, não sou triste mas não sou feliz como antes, e agora vejo que era feliz até nos momentos infelizes, porque eu estava vivendo. Agora, ainda vivo, mas não sei se por muito tempo, cheguei na idade em que a morte lhe avisa que vai chegar de qualquer jeito e não adianta fugir. Estou aqui, fazendo o meu tricô, talvez como toda velhinha da minha idade, balançando na minha cadeira, esperando meus netos chegarem e me abraçarem e me pedirem para contar aquela velha história de quando eu conheci o vovô, e o que me resta, é lembrar, lembrar que um dia, eu fui feliz.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007


Enquanto as imagens passavam finalmente pelas vidraças do ônibus eu senti que tudo estaria bem quando enfim repousasse em seus braços. Segurei o choro e pensei em parar de pensar. Queria lhe dizer tudo que passara e que me sufocara. Primeiro lhe encontrar, lhe abraçar, lhe sentir, sentir o gosto da sua boca, dos seus pêlos no meu rosto, seus cabelos leves passando pelas minhas mãos, encostar no teu peito e sentir o seu cheiro sem artificialidades.
Pensei nisso tudo e quando enfim cheguei ao nosso ponto de encontro meus olhos pularam em direção à sua imagem, que como sempre era calma e confortante. Desci do ônibus e ultrapassando os transeuntes que nos impedia de nos encontrarmos mais rápido, lhe abracei o mais profundo que podia até que minha alma se aconchegasse a sua, senti seu gosto, olhei nos seus olhos de alegria e me senti em paz. Estávamos juntos de novo. E tudo que se passara, se passara, como as imagens que passavam pelas vidraças do ônibus.
E enquanto passeávamos juntos abraçados sentindo nossa saudade se matar, contando tudo que tentava impedir nossa felicidade, senti que nada poderia nos atrapalhar, nem mesmo o final não visto do filme, nem mesmo minha impaciência, nem mesmo o gosto do choro na minha garganta, nem mesmo as outras pessoas que teimavam em ser infelizes.

domingo, 2 de setembro de 2007

Um gesto


Estava a pensar nos segredos que nos rodeiam, suspirei um pouco e afundei na visão da paisagem que olhava. Como quem devaneia, delira, dorme de olhos abertos, a visão embaça lentamente sob o objeto escolhido, até que os pensamentos tomam forma e imagem, e transformam a paisagem antes real em fantasia, o pensamento concretiza-se a frente. Mas por um vulto ao longe tudo que virou matéria se dissolve mais uma vez, e a realidade torna, estupefata. Os sons, as cores, as pessoas, o mundo. De volta, ao teu lado, os dedos, os teus, os meus, a difícil necessidade de te tocar, o profundo receio que impede. Ultrapassando a barreira entre o ir e não-ir consegui toca-los e confundi se o motivo de tal felicidade súbita era por seu sorriso ou pelo gesto. Como tão pequeno movimento entre duas mãos pode causar tanta felicidade? Como tal gesto consegue dizer mais do que palavras? Simplesmente os dedos passarem ligeiramente uns aos outros, não é preciso que os rostos se olhem, nem que se diga: posso? Apenas tocar.